O TRF-4 deverá confirmar e até agravar no próximo dia 24 a pena imposta pelo juiz Sergio Moro a Lula, mas o petista dificilmente será preso. Enquanto isso, a sociedade discute a candidatura ou não de um réu condenado pela Justiça que não terá pago pelos seus crimes de corrupção
Sérgio Pardellas e Germano Oliveira – ISTOÉ
No auge da Lava Jato, à medida que as provas – testemunhais e materiais – se acumulavam, se consolidava no imaginário popular a insofismável certeza de que, mais dia menos dia, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva seria condenado a dormir atrás das grades – desta vez em tempos democráticos e por corrupção. Eis que se avizinha o tão acalentado momento inescapável da decisão. Na quarta-feira 24, o Tribunal Regional Federal da 4ª região (TRF-4) promoverá o julgamento do recurso de Lula à sentença do juiz Sergio Moro a nove anos e seis meses de prisão, por corrupção passiva e lavagem de dinheiro em função da fartura de elementos probatórios levantados em minucioso processo desenvolvido pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal. Lula é acusado de receber R$ 3,7 milhões da empreiteira OAS como contrapartida aos contratos superfaturados na Petrobras celebrados durante os governos do PT. Desse total, R$ 2,2 milhões foram embutidos no tríplex do Guarujá, construído e reformado pela OAS para atender às necessidades do ex-presidente e de sua mulher Marisa Letícia, falecida no ano passado. O processo reúne abundante e incontestável documentação e, em 70% das situações, os três desembargadores da 8ª Turma do TRF-4, João Pedro Gebran Neto, Leandro Paulsen e Victor Luis dos Santos Laus, revelaram-se mais rigorosos do que o próprio juiz Sergio Moro. Por isso, no meio político, e no próprio seio do PT, a condenação é considerada favas contadas, restando apenas conhecer o placar, se 2×1, em que o voto divergente ensejaria uma eventual contestação do mérito da sentença, ou 3×0, uma unanimidade quase impossível de ser revertida por recurso.
Portanto, a julgar pelas leis vigentes no País, em especial a norma, assim entendida pela Suprema Corte do Brasil, segundo a qual a pena de prisão precisa ser executada a partir da confirmação da sentença em segunda instância, Lula deveria estar costeando a cadeia – com os dias de liberdade contados, como qualquer brasileiro. Afinal, o petista é um réu comum, não um réu político. E, como réu comum, não deveria estar acima da lei. Mas não é o que provavelmente acontecerá tão cedo. Graças a uma narrativa bem embrulhada, e, pior, nutrida e disseminada com apoio até de setores da oposição, o petista foi alçado a uma condição excepcional. Pelos instintos que ele desperta – a favor e contra – se convencionou que Lula, contrariando a legislação, dificilmente será preso antes de julho, mesmo com a derrota em segunda instância e qualquer que seja o placar do julgamento.
Assim sendo, o que se discute hoje no País é se, mesmo condenado, o ex-presidente irá ou não conquistar o direito de imprimir seu nome da cédula de candidato à Presidência da República. Debate-se na sociedade hoje se o Tribunal Superior Eleitoral assumirá jurisprudência capaz de permitir que o petista siga adiante na disputa ao Planalto – uma inversão completa de valores, um drible astuto na lei, a ponto de até o TRF-4 se ver compelido a divulgar uma nota para esclarecer que Lula não poderá ser detido após o julgamento de quarta-feira, pois ainda lhe serão permitidos agravos.
Nunca na história do País um réu foi tratado com tanto salamaleque. Outra bofetada na cara da Justiça, encarada nos meios político e jurídico com constrangedora normalidade, é a decisão do petista de viajar para Etiópia um dia depois do julgamento, independentemente do resultado. Detalhe: o país não tem tratado de extradição com o Brasil. Ao cidadão comum jamais seria dispensado semelhante tratamento. Evidente, o estado democrático de direito deve ser preservado, caso contrário é estado de exceção. Mas não se trata de contrariá-lo ou não. Ninguém questiona o direito de defesa. Ocorre que, num País sério, a discussão a respeito da possível candidatura de um réu para comandar os destinos do País jamais poderia vir à frente do debate acerca da principal conseqüência de uma provável condenação do mesmo réu por corrupção em segunda instância, qual seja, a prisão. Queimou-se uma etapa legal em favor da conveniência eleitoral. “Vale lembrar que prevalece atualmente no STF o entendimento segundo o qual a pena já pode ser executada, mesmo que haja recursos pendentes de julgamento no STJ e no STF”, assinala o professor da Faculdade de Direito do IDP-São Paulo, João Paulo Martinelli. “A democracia brasileira, que já está desmoralizada e não é de hoje, não consegue responder a uma questão como essa: como é possível que um criminoso que não cumpriu a pena pode gerir a coisa pública? Não é possível que se discuta a candidatura de Lula à Presidência”, indigna-se o historiador Marco Antonio Villa.
A narrativa embalada pelo PT é a consagração de uma espécie de espiral do silêncio – na qual, conforme a tese criada pela alemã Elisabeth Noelle-Neumann, uma parcela expressiva da sociedade, constrangida, se refugia no silêncio temendo contrariar a opinião de uma suposta maioria. Como bom manipulador de massas, Lula cumpriu bem o manual, aperfeiçoado por ele próprio e pelo PT. É o que Leszeck Kolakowski, em “O espírito revolucionário”, chama de ditadura da verdade.
Estabeleceu-se, como que por imposição, que a prisão de Lula levaria o caos à sociedade, ao gerar uma convulsão social sem precedentes. Logo, ele não poderia ser preso. Com medo de criar um mártir, a própria oposição não só condescendeu com a estratégia como a lapidou, para o deleite do PT. Em recente entrevista, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse: 1. que não gostaria de ver Lula na cadeia, a despeito das provas irrefutáveis contra ele. E 2: que o petista deveria sim ser candidato para ser derrotado nas urnas. Ou seja, agora, não só um réu, possivelmente condenado por práticas corruptas, não vai para a cadeia, como também não pode deixar de ser candidato à Presidência. É o que entoará o PT em mobilizações marcadas para a próxima semana em Porto Alegre, cidade onde acontecerá o julgamento de Lula. “Eleição sem Lula é fraude”, bradam os petistas. Embora tudo leve a crer que as manifestações organizadas pelo PT, CUT, MST e MTST se transformarão num rotundo fracasso, hoje são poucos os políticos, até mesmo formadores de opinião, que se insurgem contra o receituário. Importantes lideranças políticas incorrem no mesmo erro cometido em 2005, quando, no apogeu do mensalão, dirigentes de partidos oposicionistas desistiram de seguir com um pedido de impeachment de Lula, sob o pretenso argumento de que ele seria aniquilado nas urnas nas eleições de 2006. Deu no que deu. O resto é história.
Ao lançarem o farsesco argumento de que uma eleição sem Lula será ilegítima, petistas e congêneres fingem não lembrar da Lei da Ficha Suja, apesar de o próprio PT ter ajudado a aprová-la no Congresso Nacional em 2010. A lei é cristalina: um cidadão condenado em segunda instância torna-se inelegível, portanto, impedido de concorrer a qualquer cargo eletivo. “A lei da ficha limpa veda candidatura de candidatos que tenham sido condenados em segundo grau por um órgão colegiado”, atesta Gustavo Badaró, professor de processo penal da USP. Apesar disso, já surgem pareceres marotos, encomendados pelo PT, que dizem que a candidatura de Lula só poderá ser objeto de impugnação a partir de agosto, quando ela for homologada em convenção petista. Se todos os prazos para o julgamento forem cumpridos no TSE, afirmam os mesmos juristas ligados ao PT, o eventual afastamento só ocorreria depois do primeiro turno da eleição presidencial. “Vamos supor que o TSE reconheça que ele está inelegível, mas contra essa decisão ainda cabem os embargos de declaração e recurso (contra a condenação) ao Supremo Tribunal Federal. Enquanto o processo não transitar em julgado, ou seja, se esgotarem todas as possibilidades de recurso, ele seguiria podendo fazer campanha, e é impossível transitar em julgado antes de outubro”, diz o parecer. Em nota oficial, o PT endossou: “Se têm a expectativa de ver Lula inelegível a partir do julgamento da apelação, enganam-se. Qualquer discussão ou questionamento sobre sua candidatura só se dará após o registro no Tribunal Superior Eleitoral. Lula é o nosso candidato e será o próximo presidente do Brasil”.
Uma sociedade anestesiada talvez não consiga enxergar e compreender o seu destino histórico – o de participar do resgate e da libertação de um povo e de toda uma cultura deletéria imposta ao País pelos anos de lulopetismo no poder. O que o PT, às vésperas do julgamento do seu maior líder, insiste em pregar é uma afronta – mais uma entre tantas – aos valores republicanos. Uma afronta que apenas o Judiciário brasileiro, investido do sacrossanto poder de fazer justiça, à luz da legislação penal e eleitoral em vigor no País, poderá impedir de prosperar. Não apenas no próximo dia 24, como ao longo de todo ano de 2018. Para que nenhum fora da lei, jamais e em tempo algum, paire acima da lei.
Haddad na linha de fogo
O ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, considerado o Plano B do PT caso Lula torne-se inelegível, também acaba de cair nas malhas da Justiça. Ele foi indiciado pela Polícia Federal por falsidade ideológica eleitoral, o chamado caixa dois. Haddad é suspeito de usar dinheiro sujo da empreiteira UTC para pagar R$ 2,6 milhões em dívidas de sua vitoriosa campanha de 2012.
A pendência de Haddad paga pela UTC, por meio de caixa dois, foi gerada por serviços das gráficas LWC e Cândido Oliveira Ltda. Como o PT não pagou o débito com as gráficas, o tesoureiro do partido João Vaccari Neto procurou o dono da UTC Ricardo Pessoa para que ele assumisse a conta. Pessoa, que é colaborador da Justiça, diz que procurou os proprietários da gráfica, ligados ao ex-deputado Francisco Carlos de Souza, o Chicão, para negociar a quitação. Os pagamentos foram feitos pelo doleiro Alberto Youssef. Chicão recebeu até em dinheiro vivo. Os pagamentos foram descontados das propinas que o doleiro tinha a pagar ao PT em contratos superfaturados
O horizonte do líder petista
O que pode acontecer após o julgamento do ex-presidente Lula no TRF-4, tribunal de segunda instância:
*Os três desembargadores do TRF-4 podem inocentar o ex-presidente, assim como podem manter a pena aplicada pelo juiz Sergio Moro (9 anos e 6 meses) de prisão. Podem também reduzir ou aumentar a dosimetria
*Com a condenação mantida (redução ou aumento da pena), Lula poderia em tese ter a prisão decretada, já que há decisão do STF de que réus condenados em segunda instância devem cumprir a pena numa penitenciária
*Mas o próprio TRF-4 divulgou nota, no começo de janeiro, dizendo que Lula não será preso imediatamente. Antes de ter o mandado de prisão expedido pelo juiz Sergio Moro, o ex-presidente poderá apelar da sentença em liberdade
*Os advogados de Lula podem ingressar com embargos de declaração (para esclarecimento da sentença) ou embargos infringentes (para reverter a pena). Os recursos podem ser feitos junto aos próprios julgadores do TRF-4. Esse processo pode levar meses
*Se ao fim e a cabo desses recursos, o TRF-4 mantiver a prisão de Lula, Sergio Moro expede o mandado de prisão. Mas o ex-presidente ainda pode apelar para o STJ e STF, com pedidos de habeas-corpus, protelando assim a ida para a cadeia
*Quanto à inegebilidade, a simples confirmação da condenação em segunda instância (TRF-4) torna o ex-presidente inelegível. Afinal, a Lei de Ficha Limpa é clara: condenados em segundo grau estão inaptos a disputarem cargos eletivos
*Lula só conseguirá entrar na disputa pela presidência se recorrer à Justiça Eleitoral e obter ganho de causa, mas dificilmente conseguirá permanecer na corrida ao Palácio do Planalto. A não ser que o TSE lhe conceda liminar para disputar o pleito sub-judice até uma decisão final do STF sobre sua condenação